-O HOMEM INVISÍVEL
Havia claro, um
ritual a ser cumprido. Primeiro aleatoriamente passeamos em volta fazendo
uma pré-seleção de onde exatamente aquela “purificação”
aconteceria. Segundo, depois de minuciosamente examinados, podemos decidir pelo
primeiro que obviamente já havia nos
conquistado a primeira escutada. Entramos metodicamente escolhendo onde sentar,
dando prioridade ao cantinho mais externo, mais ventilado, mas harmonioso com
nosso clima de fuga da realidade. Bem que as pessoas usando cigarros
recreativos, no fundo escuro do bar, próximo à praia não
fora uma escolha nossa, mas uma realidade atrelada de algum modo a
essa historia.
O
cantor até às 21h era sem dúvida uma das, mas não
a única coisa boa. E digo isso porque a
comida era horrível, o sabor do camarão
era de uma angustia conflitante com a alegria que deveria habitar o prato, as
batatas pretas, ao invés de fritas, também
foram bem decepcionantes. Os copos que deviam ser de shop que eram de café de
interior, aqueles que vêm de brinde no extrato de tomate, o molho que deveria
ser rose e era... Bem, não sei o que era aquilo, mas sei que não
era o que devia ser. Para mim, repetia a mente com afirmativo poder subliminar
“Você esta aqui pela música, está tudo bem essa comida não
ser boa, e o suco ser aguado”... E
seguia mergulhada na ciência que o que devia importar primeiro era a música,
claro!
Mas,
como relatei anteriormente a musica não era a única
coisa boa, havia uma brisa soprando meus cabelos pretos com certa insistência
e para mim soava como uma caricia amorosa, também
havia ali uma coruja que plainava plena a beira mar e que também
me encantava.
Diante
disso, que era somente o que minha mente queria enxergar, tinha a realidade que
ela ocultava conscientemente. Aqueles seres humanos em situação
de abandono na rua, entre o mar e o bar, aos fundos fumando um cigarro fúnebre
que já os havia trazido até
ali e que um dia seria sua ultima memoria, seu ultimo beijo... Aquela escuridão
onde ser invisível era o esperado. E
de onde veio o inesperado posteriormente, minha mente ignorava em parte.
A
noite seguia seu ritmo, indo contar seus segundos em cada bufada de ar e ondas
leves do mar que batiam sobre a areia, ali no bar eu absorta na minha melodia
interior, afogava-me em cada verso da música cantada, cantando também a pleno
pulmão, esquecendo-me da etiqueta básica
de não estar num karaokê,
e quiçá ate mesmo atrapalhando um pouco a desenvoltura
do cantor com meu acompanhamento honesto, mas fora da sintonia... Eu, mesmo
envolvida com a brisa e o som despropositadamente insistia em enxergar
repetidamente os movimentos do mundo invisível e de um modo
estranho me conectei com ele sem antecipação.
Depois
das 21h30min, o cenário transformou-se por um sax. Era um velho senhor de
cabelos bagunçados e barba branca alinhada de dar inveja aos espectadores, com
uma jovem alma ventilada de sopro tocava seu instrumento com maestria, ouvi de
alguém no bar “O miserável é um gênio”, que devia soar como elogio né?
Em um momento único de encantamento que não durou tanto quanto
gostaríamos, mas que nos
tocou mais do que poderíamos admitir a magica
estava acontecendo.
Talvez
o som do saxofone tenha tirado do estado de sonambulismo a Alma de Luciano
talvez tenha sido aquele momento que inebriou os presentes que tenha tido sobre
ele o efeito inverso, despertando-o de sua sonolência passiva e movendo-o a
ousadamente pedir uma oportunidade, uma música, um pingo da gloria que o cantor
desfrutava naquela noite, não creio que fosse isso que realmente
desejasse, mas entendo que o brilho, mesmo se fosse inconscientemente, foi
radicalmente dividido nas primeiras quatro silabas da música
iniciada, que inclusive até esta eu acompanhei
com meu arranjo vocal despreparado... Até mesmo o titular da noite parecia
ouvi-lo e beber mais avidamente sua cerveja, como se a inaceitabilidade do fato
do seu talento ser evidente ter sido uma surpresa difícil de digerir. Cantou
duas e foi reprendido pela proprietária cuja ignorância não
podia enxergar que o publico admitia aquele homem invisível
como espetáculo sem problemas.
Cantou três, porque o titular já
não podia deixa-lo em silencio já
que a plateia o apoiava.
-Como
é seu nome? Ouvi de longe perguntar o cantor ao homem invisível, que saíra da
escuridão para brilhar nossos olhos com sua luz
pálida e sua voz bonita.
-Não
sou ninguém, sou um habitante
das ruas... Respondeu o Homem Invisível,
negando sua própria existência.
-Mas,
você tem nome, insistia o titular...
-Sim,
Luciano, meu nome é Luciano...
Essa
conversa fora amigável e breve como sua presença no palco do bar e nas nossas
vidas, mas aquela noite foi inesquecível, pelo menos para nós que o ouvimos,
aquele Homem Invisível nunca mais o será. Engraçado porque o nome do cantor que
me alegrou a todo tempo, eu não sei, em nenhum momento me apeguei a
isso, o nome do senhor do sax, o “gênio
miserável” também não
ficou gravado em mim, apenas o homem invisível
que negou sua existência, apenas seu nome
eu jamais poderei esquecer por razões que também
não consigo explicar.
Aquele
Luciano que já não era mais invisível
para mim, com seus olhos absurdamente verdes, seu sotaque mineiro/paranaense,
sua figura magra e sua barba ruiva, com voz suave e tranquila, aquele Homem das
sombras naquela noite, ele me inspirou a escrever sobre ele, pude torná-lo real
e imortal nessas folhas e por isso, sou-lhe eternamente grata.
(João
Pessoa, 22/04/2023)
Este texto é verdadeiramente imersivo, transportando o leitor para um ambiente mágico e sensorial. As descrições detalhadas das sensações, dos personagens e do cenário criam uma atmosfera vívida, permitindo que mergulhemos na história e nos conectemos emocionalmente com os eventos narrados. A habilidade do autor em envolver os sentidos e explorar a dualidade entre a realidade visível e invisível é notável. Uma leitura encantadora e evocativa que desperta a imaginação e deixa uma marca duradoura. (nagareta)
ResponderExcluir