LEMBRANÇAS DE VIDA


Sai cedo aquele dia porque no intimo acreditei que seria bom para minha imagem ser pontual ao menos uma vez na vida. Infelizmente não foi esse o caso... Odeio esses sábados vazios e cheios de incômodos. Aquele trânsito estava infernal, aquele calor, sufocante, aquele barulho, enlouquecedor. E aquele cara do carro prata buzinando piorava em muito esse cenário. Um xingamento dele foi suficiente para em minha mente despertar antigas lembranças... Estava com meu pai num dia daqueles. Ele me instruía a lidar com o próximo nos trânsitos engarrafados da vida. E diante dele na mesma situação aquele cara do carro prata estaria completamente diminuído. E que meu pai era meio ‘exaltado’ eu diria. Não foi violento sequer uma vez na sua vida, mas tinha um terrível temperamento agridoce que nos aporrinhava na convivência diária e no engarrafamento então, ele só não dizia PADRE NOSSO, porque para adiante podia se ouvir de modo estridente sons intensos e recheados de verbopalavrõesia, ou seja, uma hemorragia interna de palavras obscenas e até constrangedoras... Ri muito por ter me lembrando do meu pai. Foi uma ótima lembrança... E senti que ainda sentia muito sua falta e me veio à cabeça que jamais iria realmente aceitar sua ausência.
Meia hora depois o sinal abre e todos saem como foguetes, e eu, obviamente a este ponto já não podia crer que aquele seria finalmente o dia em que chegaria na hora. E estava certa. Mas, meus pepinos me aguardavam na sala de espera do meu escritório, e por mais que desejasse fugir, tinha mesmo é que respirar e encarar aquele tal de senhor Turner insuportável que vinha sendo minha dor de cabeça há semanas. Ao entrar na sala com a cabeça abaixada para não tropeçar no carpete com aquela pilha imensa de dossiês, deparei-me com lustrosos sapatos pretos, Victor Hugo, com designer exclusivo e arrepiei-me de pensar que estava tão atrasada logo hoje!  Sapatos assim só poderiam estar calçando certo ‘chato’, muito familiar para mim por sua arrogância. Cumprimentei-o sem graça dando-lhe boas vindas, mas na verdade queria mesmo era esta me despedindo dele.
- Bom dia, como esta? Há muito que me espera? Tive um contratempo, infelizmente, desculpe-me por isto (E sorri risonha e suportável).
- Bom dia! Não há muito tempo para você que só ocupa-se de assinar contratos, mas para alguém como eu que vivo o meu tempo como um habito religioso, óbvio que sim! Meia hora é muito tempo, são inúmeras coisas da minha vida que se perderam aqui nessa sala fúnebre olhando sua janela empoeirada e esta escrivaninha que é um caos.
Fiquei em silencio porque jamais, nem no meu pior pesadelo, imaginei que ele faria um discurso diante de um simples bom dia, mas também passei o detesta-lo mais depois do inconveniente. Dali em diante apenas suportei olhar a cara dele de entojo e mais, como boa profissional, assinei seus contratos e sorri na despedida desejando sinceramente, e de todo meu coração, que na volta ele encontrasse um transito terrível e alguém bem preparado como meu pai para ensinar-lhe bons modos. E só de saber que o que desejei não era tão difícil de acontecer já me sentia vingada. 

Na verdade, o Sr. Turner mudou minha vida com suas observações pertinentes sobre o tempo e como o gastamos, mas isso foi depois de muitas outras reflexões. Por incrível que fosse naquele dia já era a segunda vez que um cara estranho me fazia sentir saudade do meu pai.

Virei-me apressada e segui sorrindo, chamei minha assistente e disse...
-Pode pedir para o próximo entrar, por favor!
Bati a porta e pensei ‘num sábado qualquer vou a praia velejar para sentir-me leve como a poeira que agora estava embaçando o vidro da minha janela... ’

   E apesar de saber que não tinha nada a ver, de algum modo pensar isso me libertou!


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